(AC) Democracia em Demasia?

Reflexão sobre o esgotamento do modelo de gestão nas escolas.
“Ninguém pode ver nem compreender nos outros o que ele próprio não tiver vivido”. Dando aval a esta afirmação de Hermann Hesse, não me parece que a solução seja dada por investigadores fora da escola nem por ministros que nunca leccionaram nos níveis sobre os quais recaem os seus normativos. Neste seguimento, quem terá autoridade moral para “falar” são os que “vivem lá dentro”.
Uma das evidências de que a democracia não está a vingar nas escolas é a emergência das privadas onde os seus directores, ou patrões/chefes numa perspectiva Taylorista como alguns dizem ser a solução nomeadamente Planchard (1974) e Bottery (1993) ambos citados por Costa (1996), também não possuem qualquer formação na área de gestão e/ou pedagógica, mas conseguem obter o sucesso invejado pelas públicas. Muitas nem sequer possuem qualquer projecto educativo ou ideário de escola (PEE) como “todos” asseguram ser fundamental apoiados em frases “românticas” – à boa maneira das críticas de Crato (2006) – do género: “um barco sem rumo tem um sentido nem que seja o da corrente” acrescentando-se que “não há ventos favoráveis para os que não sabem para onde vão”. Parece-me, a este respeito, que o PEE só terá cabimento em escolas privadas onde, aí sim, os valores (religiosos, políticos,...) poderão ser outros. Nas públicas, um folheto apresentativo dos recursos e das ofertas de cada uma, baseado no seu potencial e nos seus constrangimentos, parece-me suficiente, não devendo ser confundido, exageradamente e pomposamente, com um PEE.
Outras das inconsistências da democracia é não chegarmos a saber a posição que o nosso representante, eleito democraticamente num órgão hierarquicamente inferior, irá ter no órgão hierarquicamente superior, no caso dos votos secretos. Será que esse representante se direccionou segundo a decisão dos membros do órgão inferior a que também pertence? É que as eleições não garantem a escolha do melhor, mas, numa primeira e rápida análise, poderá garantir o mais disponível, o mais ambicioso, ou o mais político. Nas escolas obrigam-nos a participar (ou fazer parte) em tomadas de decisão quando não estamos formados/preparados para o fazer, e, muitas vezes, nem conhecemos as competências do órgão onde estamos inseridos ou mesmo a maneira correcta de cumprir com as nossas obrigações. Esta forma de participação torna-se mais incompreensível quando se proíbe a abstenção no caso dos órgãos consultivos (CPA artº 23) como por exemplo o conselho de turma. Acontece mesmo, um professor poder ser obrigado a votar a alteração de uma classificação de um determinado aluno, quando esse aluno não faz parte dos inscritos da sua disciplina. Ou seja, nem sequer o conhece. Existe também a falta de humildade de reconhecermos as nossa falhas em determinados assuntos, fazendo com que muitas vezes nem sequer ouçamos os verdadeiros especialistas que, com certeza, existem em todas as escolas dada a diversidade de formação académica dos professores.
Nas organizações, como a escola, que necessitam de decisões na hora, muito próximas de organizações anárquicas, com inúmeras situações imprevisíveis, tal como é acentuado por Brandão (1999), não se compadecem com reuniões numa lógica de procura de consensos arrastando processos que deveriam ser resolvidos no momento. Daí, muitas vezes, o professor “engolir sapos” em vez de avançar com um processo disciplinar que só lhe traria mais horas de martírio em reuniões mal dirigidas, manifestamente por falta de formação, onde também se arriscaria que lhe fosse marcada numa hora que, legitimamente, já tinha ocupada para um compromisso particular, mas, também legitimamente, marcada ao jeito do convocador. Nóvoa (1990) diz que “O corpo docente é muito mais heterogéneo do que poderíamos supor”. Então, o empowerment, no sentido de proporcionar poder, informação e conhecimento em tomadas de decisão com lideranças rotativas (Cunha e Rego, 2005), não será de todo aconselhado na escola, pois, só se compreenderá num grupo homogéneo. Jesus (1996) também aponta nesse sentido e Ouchi (1992) diz mesmo que “sem formação, o convite à participação nas tomadas de decisão só arrastará consigo frustração e conflitos”. A colegialidade dos órgãos teria, assim, de ser circunscrita uma vez que só terá sentido em assembleias homogéneas no que respeita ao conhecimento dos assuntos e ao modo como devem ser tratados. Parece-me, então, que os cargos de direcção deveriam ser sujeitos a concurso público dentro da classe docente (uma vez que não é possível separar a vertente pedagógica das restantes funções, tal como é referido por vários autores) e onde a formação em ciências da educação, administração escolar e psicossociologia das organizações teria de ser preponderante nessa escolha. Não se compreende que o estado invista em cursos superiores, abrangendo estas áreas, ignorando depois os seus diplomados. Nos cargos intermédios também os elegíveis teriam se ser delimitados com base na sua formação específica para essas funções, assumindo-se a responsabilização total através da obrigatória prestação de contas no final de cada mandato. Com o actual sistema de colegialidade dos órgãos, só se diluem responsabilidades provocando as conhecidas e infindáveis reuniões massacrantes.
Paradoxalmente, a democracia necessita de um conceito que todos abominamos, que normalmente contestamos em qualquer discurso, mas que inevitavelmente necessitamos para tornar a democracia racional. Refiro-me à burocracia.

Luís Filipe Firmino Ricardo (2007)