(AC) Possibilidades, equívocos e limites no trabalho do professor/pesquisador - enfoque em ciências

São apresentados recortes da pesquisa "Supletivo Individualizado: Possibilidades, Equívocos e Limites no Ensino de Ciências", centralizada nas relações aluno/professor, aluno/recursos didáticos e na análise de mudanças no trabalho pedagógico, na área de Ciências, num curso para educação de adultos. O foco desta apresentação é a trajetória da professora/pesquisadoraproponente e executora da investigação.
Introdução
Na área de ciências nas últimas décadas, as inovações com caráter duradouro ocorridas no ensino escolar no Brasil, não têm correspondido ao número considerável de propostas/projetos de ensino produzidos/divulgados nessa área. E nem mesmo os resultados, já significativos, de pesquisas específicas sobre ensino têm, aparentemente, provocado alterações na prática pedagógica qualitativa e quantitativamente correspondentes.
Diante dessa constatação e percebendo a grande importância da mediação do professor nos processos que ocorrem em sala de aula, vários pesquisadores têm abandonado a perspectiva de um trabalho imediatamente generalizável, por estudos voltados para contextos delimitados, numa linha de investigação em que o professor pesquisa seu próprio trabalho, modificando-se enquanto modifica sua prática.
Neste artigo apresentamos alguns recortes do estudo de uma professora/pesquisadora, que realizou sua investigação junto à área de ciências, num curso individualizado, destinado à educação de adultos. Nele enfocamos prioritariamente a trajetória da professora.
A investigação teve origem quando ela se propôs a analisar algumas mudanças que havia provocado no trabalho da equipe a que pertencia. Pretendia buscar elementos, que lhe permitissem refletir sobre o ensino de ciências possível na escola onde lecionava, com o intuito de provocar outras alterações. Para tanto, investigou a dinâmica das relações aluno/professor e aluno/material didático, sendo grande parte do seu esforço voltado para o (re)conhecimento de suas próprias concepções.

Tipo de curso e as primeiras mudanças
O curso, supletivo de 1o e 2o graus, se destina a funcionários de uma universidade e a trabalhadores da região onde a escola se localiza. Nele não há aulas regulares, como em outras escolas. Os professores indicam os conteúdos que os alunos devem estudar e esses conteúdos são cobrados em provas sucessivas, várias para cada disciplina, com possibilidade do aluno se matricular em duas disciplinas de cada vez. É previsto também que os alunos podem tirar dúvidas com os professores, os quais ficam disponíveis para esse atendimento. É tarefa também dos professores aplicar e comentar a correção das provas.
O momento que isso deve ocorrer, no entanto, é definido pelo aluno. Este cumpre os conteúdos determinados utilizando o tempo que lhe for necessário.
A professora, membro da equipe docente de ciências, trabalha na escola desde sua implantação, em 1987, e, já no início questionou a proposta de ensino adotada nas ciências, módulos pautados na instrução programada. Na realidade, ela passou a vivenciar reflexões contraditórias, pois se de um lado tinha grandes restrições ao trabalho realizado nessa escola, de outro entendia que, assim organizada, ela propiciava uma opção de estudo para trabalhadores em sistema de turnos, os quais dificilmente poderiam freqüentar diariamente outra escola, sendo essa sua única oportunidade de estudo.
Dado seu descontentamento com o trabalho docente realizado, a professora também considerou que, apesar das restrições que são feitas ao ensino supletivo, e, em particular ao ensino individualizado, não poderia ficar apenas na crítica. Era preciso intervir, mesmo que essa intervenção tivesse uma abrangência limitada. Ao se propor a trabalhar de forma diferente, junto com mais três professoras de ciências, pretendia melhorar a qualidade do ensino e superar a característica comportamentalista dos módulos adotados. E mais tarde, quando começou a notar o grande número de alunos que não concluíam o curso, considerou a necessidade de contribuir para a diminuição da evasão.
Nesse sentido, foram propostas mudanças que compreenderam a reformulação de provas e a inclusão na programação curricular de textos com assuntos, que a equipe de ciências considerava mais atualizados, para serem trabalhados com os módulos, além de aulas práticas para serem realizadas em grupo. Essas alterações foram fruto de muitas discussões entre as professoras, tendo em vista as inúmeras divergências iniciais entre elas, quanto à necessidade de mudanças, e as dúvidas que tinham, relativas à viabilidade de poderem interferir na organização da escola.
Quando a professora se propôs a analisar o trabalho realizado, as dúvidas ainda pairavam sobre os avanços que as mudanças já efetuadas haviam possibilitado. E ela tinha até incerteza se havia ocorrido alguma modificação consistente com os propósitos iniciais.
A investigação deveria portanto, mostrar se haviam ocorrido avanços e quais eram esses avanços , além de evidenciar quais os limites e os equívocos cometidos.

Pressupostos, noções teóricas e metodologia da pesquisa
Não existe um único caminho para se desvelar a dinâmica escolar, e, qualquer que seja o escolhido, é fundamental que o investigador se perceba como construtor de um conhecimento, como alguém que evidencia uma realidade antes encoberta. Se essa realidade inclui as próprias ações, como no caso do professor/pesquisador, os resultados da investigação são, quase sempre, geradores de uma reflexão que pode alterar não apenas as ações, mas também as suas concepções.
No caminho percorrido, investigando seu trabalho docente, a professora/pesquisadora (re)conheceu a importância de entender as concepções que orientavam seu trabalho e selecionou/incorporou algumas noções teóricas, que contribuíram para um novo olhar sobre as evidências empíricas. Essas noções estavam em consonância com, pelo menos, alguns dos pressupostos que a pesquisadora tinha ao iniciar a investigação, ainda que, muitas vezes, esses pressupostos não estivessem imediatamente transparentes.
O caminho escolhido na pesquisa aqui enfocada admitiu a importância, para o entendimento da instituição escolar, desta ser localizada no todo social, buscando-se as origens históricas para ocorrências que ali se manifestam. E supôs também a relevância das análises de natureza psicológica, ou propriamente pedagógica, que tornam possível uma compreensão dos indivíduos e suas diversidades, presentes na sala de aula. Decorreu dessa perspectiva de abrangência o estudo e ancoragem em noções teóricas incluídas em diferentes campos de conhecimento. Entre elas, as principais foram: as noções de Reprodução e Resistência (Bourdieu e Passeron, 1975; Apple, 1982; Giroux, 1983; Enguita, 1989), que mostram como a escola reproduz a sociedade de classes e também ressaltam mecanismos de resistência contra essa reprodução; a dupla noção de Continuidade/Ruptura (Snyders, 1978; 1988) que esclarece como a aprendizagem baseada na vivência do aluno, inclui e ultrapassa essa vivência e pode romper com antigas idéias; as noções de Currículo Oculto e Tradição Seletiva dos Conteúdos (Apple, 1982; 1985) que evidenciam como a escola pode passar a cultura da obediência e como os conteúdos fragmentados mostram uma história da ciência linear, não contribuindo para uma visão mais totalizante do conteúdo aprendido.
Essas e outras noções do estudo teórico foram fundamentais para a reflexão da professora sobre a especificidade da escola em que estava atuando, e para que ela revisse algumas de suas idéias iniciais sobre ocorrências nessa escola. Foi, no entanto, preciso também um referencial que lhe permitisse olhar mais diretamente para o modo como ocorria a mediação dos conteúdos de ciências na relação com cada aluno, além de lhe possibilitar criar alternativas à visão comportamentalista, de forma coerente com as idéias desenvolvidas segundo os demais referenciais selecionados. Esse suporte ela encontrou em noções do Sócio-Interacionismo, principalmente em Vygotsky (1984, 1987, 1988). Com as idéias de auto-construção do conhecimento pelo aluno, e da contribuição da interação social para essa construção, estava dada uma alternativa evidente para o tipo de ensino praticado no supletivo individualizado, um ensino pautado na idéia de que o aluno é modelado apenas pelo meio.
Quanto à metodologia de pesquisa utilizada, esta tem pontos em comum com a pesquisa de natureza etnográfica: a professora/pesquisadora manteve contato direto e prolongado com o grupo pesquisado e, em seu trabalho, transitou constantemente entre as observações empíricas e as noções teóricas em que se apoiou. Como principais instrumentos para coleta de informações utilizou: questionários com perguntas de natureza sócio-econômica e que abordavam preferências dos alunos; entrevistas informais com estudantes; registros escritos diários de ocorrências na escola, incluindo suas interações com os alunos; reflexões escritas por ela sobre essas ocorrências e entrevista semi-estruturada com um dos autores dos módulos de ensino. Foram também objeto de análise, todos os recursos didáticos utilizados pelos alunos, produzidos ou não pelas professoras de ciências, : módulos, textos complementares, instruções e anotações das aulas práticas de laboratório e as provas.
O procedimento para extração de resultados do material coletado consistiu na leitura e releituras sucessivas das informações obtidas, à luz dos suportes teóricos que iam possibilitando um olhar diferenciado das primeiras impressões, resultantes estas da simples observação empírica e de concepções pré-existentes.
Os resultados obtidos são basicamente descritivos, e, se não configuram toda a dinâmica pedagógica da escola, evidenciam, de forma abrangente, os problemas ali vivenciados na área de ciências no período estudado. Acreditamos no valor da divulgação deste estudo, tendo em vista a contribuição que pode dar para o entendimento da instituição escolar, através dos diferentes aspectos que podem ser ressaltados em situações específicas.
Nos itens seguintes são apresentados alguns recortes da pesquisa, procurando-se neles ressaltar as ações e possíveis mudanças nessas ações e nas concepções da professora/pesquisadora.

Limites nos módulos de ciências
Um dos resultados do envolvimento da professora/pesquisadora no processo de investigação foi a substituição de algumas opiniões, inicialmente apenas genéricas, por um detalhamento sobre conteúdos específicos. Ao invés de ficar apenas na crítica aos módulos usados em ciências, por serem comportamentalistas, a professora passou a identificar fatores de fragmentação em conteúdos específicos.
Num dos exemplos apresentados, ela se refere aos conteúdos organizados para que os alunos aprendam as funções dos sistemas que formam o corpo humano. Notou que com a leitura do módulo a maioria dos alunos não incorpora a idéia de que esses sistemas são interligados. Os alunos ficam com a idéia de que os sistemas têm funções distintas e que não se relacionam. Ou seja, eles não chegam a ter visões de conjunto, como a de que o aparelho respiratório serve para trocar o gás carbônico pelo oxigênio, que é levado pelo aparelho circulatório, através do sangue impulsionado pelo coração, até as células.
Para notar essas ocorrências a professora não se deteve apenas nos módulos; analisou verbalizações (escritas e faladas) dos alunos que os haviam estudado, pautada em reflexões sobre os referenciais teóricos. No exemplo apresentado, relativo à fragmentação encontrada no modo como os sistemas do corpo humano são apresentados nos módulos de ciências, sua análise se orientou em noções como a de Lefebvre quando afirma que:
"Nada é isolado. Isolar um fato, um fenômeno, e depois conservá-lo pelo entendimento nesse isolamento, é privá-lo de sentido, de explicação, de conteúdo. É imobilizá-lo artificialmente, matá-lo. É transformar a natureza - através do entendimento metafísico - num acúmulo de objetos exteriores uns aos outros, num caos de fenômenos" (p 238, 1979).
E ao analisar as verbalizações dos alunos, enquanto detectava problemas nos módulos, a pesquisadora também notou que na leitura feita por eles muitas questões podem surgir, algumas das quais revelam além de dúvidas propriamente ditas, uma efetiva reflexão sobre o texto lido. Veja-se, por exemplo, o seguinte conjunto de questões, entregue às professoras por uma aluna, após ter estudado o módulo sobre pressão atmosférica:
"1 - Foram construídos dois hemisférios de meio metro de diâmetro, adaptados um ao outro, eles formaram uma esfera oca, perfeitamente fechada, juntou os hemisférios e extraiu o ar da esfera. Como esse ar foi extraído?
2 - Se a pressão atmosférica foi demonstrada pela primeira vez em 1854 por Otto Von Guericke, como o barômetro aparelho para medir o mesmo foi construído em 1643, por Torricelli?
3 - Como interpretar expressões como 1cm/Hg?
4 - O que são sifão, pipetas, altímetros?"
A entrega das questões pela aluna às professoras, em si, já representa uma mudança num curso supletivo que na sua organização prevê uma interação professor/aluno praticamente optativa. E ao notarmos como a aluna se deteve numa aparente contradição como a expressa na questão dois, não podemos deixar de observar que as questões foram geradas na leitura dos módulos. Há neles, portanto, apesar de toda a sua precariedade, um potencial para gerarem uma interação social construtiva, dependendo do leitor, das condições de produção da leitura e principalmente do encaminhamento dado às questões geradas nessa leitura.

Conteúdos com enfoques sociais
Uma das mudanças produzidas no curso pela equipe de ciências foi a introdução no currículo, junto com os módulos, de textos com enfoques sociais. As professoras pretendiam ampliar a visão de mundo dos alunos.
Antes de iniciar a pesquisa, com uma noção ainda não sistematizada de currículo oculto, mas com a intuição do poder que ele pode ter no desenvolvimento das concepções dos alunos, a professora aqui focalizada contribuiu para essa inclusão de textos adicionais na programação do curso supletivo. Estava preocupada com as relações que os alunos poderiam fazer entre ciência e sociedade, e considerou que poderia orientar essas relações enfocando assuntos como, por exemplo, as relações existentes entre a pobreza e o índice de verminose, ou o uso da tecnologia nuclear para aumentar o arsenal bélico.
E, já como pesquisadora, detendo-se no que efetivamente ocorreu quando os alunos interagiram com os novos recursos pedagógicos, notou a importância de se levar em consideração que o aluno traz suas próprias concepções para a sala de aula. Questões como fome, violência, aborto, e outras, foram consideradas, por muitos alunos, como sendo problemas individuais - a culpa era de quem vivia o problema, não se relacionando ao tipo de sociedade em que vivem esses indivíduos. Na mesma perspectiva, os alunos atribuíam a si próprios a culpa por não terem estudado no devido tempo, por não terem podido estudar e trabalhar simultaneamente. Idéias, como a de que o brasileiro é vagabundo, idéias favoráveis à pena de morte, e outras, foram manifestadas pelos alunos sem muita reflexão. A pesquisadora notou também que numa pesquisa, como a que realizou, não é fácil associar tendências e encontrar causas. Ao tentar relacionar informações de natureza sócio-econômica com falas dos alunos em entrevistas, ela percebeu, por exemplo, que apesar dos alunos serem bastante heterogêneos quanto à situação financeira, não foi possível relacionar sua situação econômica com as suas opiniões.
E, a interferência das concepções trazidas pelos alunos, relativas a assuntos de outra natureza, na postura em relação aos conteúdos da Ciência, tornou-se evidente em alguns casos. A professora/pesquisadora notou, por exemplo, que existe um confronto entre algumas religiões das quais os alunos são adeptos e certos assuntos tratados na escola. Essa questão ficou bem marcante quando trabalhou a teoria da evolução. Enquanto alguns alunos pareciam se questionar - "Essa evolução mexeu com a minha cabeça" - "É professora desse jeito não dá mais para acreditar em Adão e Eva"-, outros foram até conversar com outras pessoas, como os pastores de suas igrejas, para poderem argumentar com as professoras.
As ações e concepções reveladas pela pesquisadora (professora) foram aproximando cada vez mais a professora (pesquisadora) dos limites da interação escolar e influenciando as concepções, que tinha inicialmente, sobre como deveria ser sua atuação docente. Com a investigação, evidenciou o equívoco que é o professor tentar fazer com que o aluno supere uma ideologia - por exemplo, quanto à concepção de Ciência - por outra mais adequada, sem levar em conta a profundidade das concepções anteriormente incorporadas pelo estudante. Se o professor coloca a teoria de forma autoritária, sem levar em conta o que pensam os alunos, estes podem dissimular escondendo o que realmente pensam. Percebeu, na prática, a importância da noção de continuidade e ruptura como é discutida por Snyders (1978). Num ensino pautado nessa noção deve ser considerada a realidade do aluno, para que seus conhecimentos se modifiquem de forma progressiva no sentido do conhecimento científico, para que ele passe a observar sob nova ótica o mundo que o cerca, em processos permanentes de continuidade e ruptura.

Equívocos da avaliação
Uma outra mudança pensada pelas professoras de ciências do supletivo individualizado, com o objetivo de ampliar a visão de mundo dos alunos, foi a transformação das provas teste em provas dissertativas. Nestas últimas, elas viram um ótimo meio para introduzirem questões de natureza social e polêmica, pois certamente os alunos viriam discuti-las após a prova. Registros de ocorrências durante a investigação iriam mostrar equívocos nessa idéia. Não estava sendo considerada a grande influência que o ato de avaliar tem sobre as manisfestações dos alunos.
A investigação mostrou que as mudanças introduzidas nas provas não haviam mudado essencialmente a maneira de avaliar os alunos. A pesquisadora se deu conta que apenas tinham sido utilizadas novas técnicas, sem que fossem considerados o poder e a carga ideológica, que a avaliação encerra, aspectos estes analisados por Freitas (1991), e cujas manifestações ela pode notar detendo-se na análise da maneira como os alunos do supletivo respondiam as questões introduzidas nas provas.
Se, como ocorre usualmente na escola, a professora apenas tivesse corrigido as provas com intuito de dar uma nota poderia ter a impressão, em várias ocasiões, que os alunos haviam aprendido o conteúdo, por responderem "certinho" às questões. Mas, a pesquisa mostrou outros aspectos, pois exigiu o acompanhamento do aluno mais de perto, revelando relações antes não percebidas, e mostrando que algumas perguntas podem dar mais informações sobre quem pergunta a quem vai responder, do que as respostas darão a quem está perguntando.
A pesquisadora obteve respostas diretas de alunos evidenciando o que acabamos de afirmar. Um exemplo foi numa pergunta sobre evolução. Como os alunos já haviam lido sobre o assunto no módulo correspondente, na prova a equipe de ciências formulou uma questão tentando relacionar a teoria da evolução com a possibilidade de vida em outro planeta - era pedida a opinião do aluno sobre essa possibilidade. Tendo perguntado, informalmente após a prova, a um estudante que havia respondido "não" na prova, se realmente ele achava isso, ele respondeu:
"Ah, professora! Eu acredito em ser de outro planeta, mas se eu respondesse o que eu achava realmente, vocês iam me achar louco, e aí eu não ganho nota".
Ficou assim evidente que o espaço aberto na prova para que o aluno pudesse se expressar era fictício, pois estava sob o olhar do professor, que é quem determina a nota, e esta sim continuava controlando o aluno.
E, tentando entender o que ocorria nas provas a professora/pesquisadora evidenciou também, que o poder da avaliação estava presente em muitos outros momentos da interação professor/aluno no dia a dia da escola estudada. Notou que comentários como "Você não sabe ? É fácil", ou "Como é que você acerta esta questão e essa não? Não foi falta de atenção?" podem contribuir para que o aluno se submeta cada vez mais à cultura de obediência e do consenso, o que certamente, não contribui para que ele desenvolva nem uma ampla visão de mundo, nem um aprendizado efetivo da ciência.
Observações desse tipo, contribuíram para que algumas vezes a pesquisadora assumisse um posicionamento pessimista em relação à escola. Mas, a dinâmica do próprio trabalho fez prevalecer uma visão que pode ser resumida na opinião de Giroux (1983), quando lembra que é preciso ver a escola não apenas através de seus mecanismos de dominação, mas também desvelar como tais mecanismos se processam na sociedade, e como os diferentes grupos sociais aceitam e também rejeitam as mediações complexas da cultura.

Possibilidade e limites do trabalho pedagógico
Ao mesmo tempo que procurava desvelar manifestações do currículo oculto e questionava a lógica de que para uma pergunta só existe uma resposta certa, a pesquisadora se deteve principalmente na análise das suposições "embutidas" nas questões dos alunos.
No desenvolvimento da investigação, notou como efetivamente, ao se abrir espaço para o estudante perguntar e colocar suas opiniões, ele expõe sua maneira de pensar, possibilitando ao professor conhecê-lo melhor, o que contribui para a efetiva interação em aula. E isto pode ocorrer em provas, em orientações individuais ou em aulas práticas, ou ainda, na abordagem de conteúdos, que usualmente não fazem parte dos currículos oficiais, como aqueles com enfoques sociais, já citados.
É importante que a reflexão sobre a fala do aluno permita que sejam identificadas algumas de suas concepções. Vejamos os seguintes exemplos na fala de um aluno:
"Se uma cobra não venenosa se alimenta de outra venenosa, como fica a situação em relação a outra devorada?" Suposição de que já que a cobra venenosa possui veneno, a outra poderia ser envenenada?
"Se a vacina é fabricada para proteção contra microrganismos por que contém microrganismos?" Concepção de que todo microrganismo faz mal à saúde? Idéia muito comum entre os alunos.
Mas uma fala do mesmo aluno exemplifica também limites para a interação escolar que é importante identificar no trabalho pedagógico: "Como que uma intelectual como a senhora pode se interessar por um trabalho de um ignorante como eu?"
Esta fala dá idéia das restrições, que o estudante pode ter se imposto em suas relações sociais e na própria convivência escolar, e essas restrições não são fáceis de superar.
Um trabalho como o da professora/pesquisadora é apenas uma alternativa com potencial para se chegar à superação de alguns limites que são criados em contextos mais abrangentes do que o próprio ambiente e condições da instituição escolar.

Teoria e evidência empírica
Em investigações como a aqui descrita o estudo do cotidiano escolar é "...fundamental para se compreender como a escola desempenha o seu papel socializador, seja na transmissão dos conteúdos acadêmicos, seja na veiculação das crenças e valores que aparecem nas ações, interações, nas rotinas e nas relações sociais que caracterizam o cotidiano da experiência escolar" (André, 1989, p.39).
E no trabalho aqui descrito o estudo do cotidiano não se pautou nem só na evidência empírica nem apenas nos subsídios do estudo teórico. Podemos dizer que houve, sem dúvida, a interligação dos dois aspectos, pois enquanto algumas noções incorporadas pela professora/pesquisadora iam orientando seus recortes do conjunto possível de análise, a própria empiria ia determinando o sentido do estudo teórico.
Assim, já com seus primeiros registros de ocorrências no supletivo, a professora/pesquisadora, preocupada em compreender como eram incorporados os conteúdos de ensino, e querendo saber se havia um período ótimo para a aprendizagem, e se o adulto já teria passado desse período, encontrou no estudo de L. S. Vygotsky subsídios que a ajudaram a refletir sobre ocorrências importantes do cotidiano escolar, mesmo tendo esse autor se dedicado basicamente ao estudo de crianças. Apresentamos a seguir algumas de suas reflexões.
Segundo Vygotsky (1988) os adultos " ...dispõem de grande capacidade de aprendizagem" (p. 115) e "Existe uma dependência recíproca, extremamente complexa e dinâmica, entre o processo de desenvolvimento e o da aprendizagem, dependência que não pode ser explicada por uma única fórmula especulativa apriorística" (p.116-117).
Mas, se é verdade que "O que a criança pode fazer hoje com o auxílio dos adultos poderá fazê-lo amanhã por si só" (p.113), isto também ocorre com o adulto, em fase de escolarização, quando este é auxiliado por outro adulto? No caso do adulto, seria válida a afirmação de Oliveira (1993, p.60), de que "o aprendizado desperta processos de desenvolvimento que, aos poucos, vão tornar-se parte das funções psicológicas consolidadas do indivíduo"?
Tentando responder estas questões a professora/pesquisadora levou em conta que um fato observado por Vygotsky foi que o homem vivencia muita coisa sem estar consciente. Com relação à língua, ele aprende a de seus pares e durante toda a sua vida o significado que atribui às palavras vai se modificando, sendo ampliado. E essa ampliação nos conceitos e a tomada de consciência sobre certos conhecimentos adquiridos puderam ser notadas por ela em suas observações. Várias vezes ouviu comentários como : "Ah! Eu vi isso na TV e não entendi, agora ficou claro para mim", ou "Mas que interessante, eu nunca parei para pensar nisso, apesar de conviver com isso". E, com base no registro de falas desse tipo aumentou sua convicção de que a escola estava contribuindo para a sistematização de conhecimentos dos adultos que assim se manifestavam.
Um outro exemplo da influência de noções teóricas orientando observações empíricas foi em relação às concepções espontâneas. Concepções estas consideradas no sentido daqueles conceitos que foram elaborados com base nas interações do aluno no seu meio, antes de vir para a escola. Segundo Vygotsky, os conceitos espontâneos e não espontâneos se influenciam e se relacionam, e quanto mais amplo um conceito ficar, mais nos afastamos do início de sua formação, sem que, no entanto, o conceito inicial deixe de existir. Em situações novas o indivíduo pode recorrer a esse conceito mais simples. E como exemplo de uma situação desse tipo a pesquisadora cita o aprendizado dos estudantes sobre a mudança de carapaça dos insetos. Foi-lhes dito que essa mudança ocorre para que o inseto possa crescer. Mas, diante de uma carapaça de cigarra, muitos alunos comentaram "Ah! Mas isso acontece porque a cigarra canta tanto que arrebenta". As informações escolares apenas fizeram, neste caso, com que manifestassem o que haviam aprendido ainda quando crianças. Estavam apenas evidenciando seu "senso comum".
E analisando globalmente conjuntos de interações entre as professoras e os alunos, notou que quanto mais as professoras se serviam do concreto melhor era a interação e mais os alunos pareciam ampliar os seus conceitos, servindo-se das mediações organizadas por elas. Num exemplo dessa constatação, a pesquisadora cita a necessidade dos alunos observarem um terrário (um vidro transparente completamente fechado com plantas, terra, água e ar) por algum tempo, para "acreditarem" que as plantas vão sobreviver. Quase todos, mesmo já tendo estudado fotossíntese afirmaram, de imediato, "a planta vai ficar sufocada".
Constatações como essa, já bastante divulgadas quando se trata de crianças, evidenciam que em alguns aspectos o ensino do adulto deve ser semelhante ao da criança. O que de forma alguma pode ser interpretado no sentido de se pensar o ensino para diferentes idades de forma igual. Os exemplos tratam apenas de alguns aspectos localizados.
Em mais um exemplo, recorrendo ainda a Vygotsky (1987), a professora/pesquisadora notou possíveis pensamentos por complexos nos adultos da escola estudada. Para o autor, no pensamento por complexos
"...os objetos isolados associam-se na mente da criança não apenas às impressões subjetivas da criança mas também devido às relações que de fato existem entre esses objetos. Trata-se de uma nova aquisição...” (pp.52-53).
Registrando, que o pensamento por complexos possui idéias coerentes e objetivas, mas diferentes se comparadas ao pensamento mais elaborado, - são idéias que não dependem de ligações abstratas e lógicas, e sim de ligações concretas, factuais - a pesquisadora cita o exemplo, obtido em entrevista com uma aluna. Esta, que tinha dificuldade em calcular a velocidade num exercício em que era preciso transformar horas em segundos, depois da professora ter feito o cálculo e dado algumas explicações , revelou que não sabia quantos segundos tinha uma hora. E, em seguida, questionada se achava que era um número grande ou pequeno, respondeu "Deve ser um número pequeno, pois o segundo passa tão rápido". Embora não tivesse chegado à relação inversa, evidenciou o estabelecimento de uma relação, ainda que inadequada.
Com exemplos desse tipo, parece natural que a pesquisadora tenha concluído pela importância de se notar que, como acontece com as crianças, os adultos continuam passando por processos de formação de conceitos, e ampliando sua visão de mundo, através de inúmeras generalizações. E, gostaríamos de ressaltar que conclusões/convicções dessa natureza são consequências possíveis da reflexão necessária no caminhar do professor, amplamente facilitadas quando ele se transforma num professor/pesquisador.

Para concluirmos...
Como resultados da investigação, a professora/pesquisadora encontrou no supletivo individualizado, praticado na escola estudada, algumas interações que tinham promovido situações de evidente aprendizagem. Registrou também limites, como a flexibilidade de horário, que torna possível o acesso do trabalhador ao curso, mas pode também contribuir para sua presença apenas ocasional na escola. E alguns equívocos foram ressaltados, como as tentativas de utilização das provas pelos professores para promoverem mudanças de caráter ideológico nas concepções dos alunos, sem levarem em conta todo o poder que uma prova subentende.
Neste artigo foram destacados alguns recortes da pesquisa. Considerando-a no todo, e focalizando-se a trajetória da pesquisadora/professora, o mais relevante nos parece ser a ênfase na importância de, no processo de interação escolar, se procurar reconstituir o pensamento do aluno, tentando compreender as diferentes dimensões que este pensamento pode abranger.
Consideramos que estudos deste tipo, de natureza qualitativa e descritivos, oferecem contribuições para a investigação científica, principalmente na medida em que evidenciam aspectos usualmente não considerados da prática pedagógica, neste caso, no ensino das ciências. Mas talvez o principal papel destes estudos, quando são pesquisadas as próprias ações, seja o de promoverem a efetiva reflexão do professor sobre o seu trabalho.

Bibliografia
André, M.E.D.A.(1989). A pesquisa no cotidiano escolar, in Fazenda, I.(org.) Metodologia da Pesquisa Educacional. São Paulo: Cortez Editora, 33-45.
Apple, M.W. (1982) Ideologia e Currículo. São Paulo, Ed. Brasiliense, 9-42 e 125-157.
_________ (1985).Educação e Poder. Porto Alegre: Artes Médicas, 55-107.
Bourdieu, P. & Passeron, J.S.(1975). "Eliminação e seleção" in A reprodução: elementos para uma teoria de ensino. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 151-185.
Enguita, M.F. (1989). A face oculta da escola. Porto Alegre: Artes Médicas.
Freitas, L.C. (1991) A dialética da eliminação no processo seletivo. Revista Educação & Sociedade, 39, Campinas: Papirus, pp.265-285.
Giroux, H. (1983). Teoria crítica e resistência em educação. Petrópolis: Ed. Vozes.
Lefebvre, H. (1979). Lógica Formal/Lógica Dialética. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira S.A.
Oliveira, M.K. (1993). Vygotsky - Aprendizado e desenvolvimento - Um processo histórico. São Paulo: Editora Scipione.
Snyders, G. (1978). Para onde vão as pedagogias não diretivas? Lisboa: Ed.Moraes, 309-365.
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Souza, S.C. (1995). Supletivo individualizado: possibilidades, equívocos e limites no ensino de ciências. Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas.
Vygotsky, L.S. (1984) A formação social da mente. São Paulo. Ed. Martins Fontes.
___________(1987). Pensamento e linguagem. São Paulo: Ed. Martins Fontes.
___________(1988). Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar, in Vygotsky, L.S. Luria, A.R. & Leontiev, A.N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ed. Ícone - Ed. Usp, 114-117.
Maria José P.M.de Almeida & Suzani Cassiani de Souza

NOTÍCIAS

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“Mudanças no ensino básico e secundário foram financiadas com dinheiro poupado nos salários” do professores.
Visão nº 880 (Jan-2010)
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“O acordo assinado entre o Ministério da Educação e os sindicatos do sector promete abrir uma nova frente de guerra na Função Pública. As organizações sindicais da UGT e da CGTP vão aproveitar as cedências na educação para tentarem flexibilizar a avaliação e a progressão da generalidade dos funcionários públicos.”
Jornal de Negócios on-line (13-Jan-2010)
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Segundo a FENPROF as negociações com o ME resultaram no seguinte:
“a) Que os bons professores, identificados como tal em sede de avaliação de desempenho, chegam ao topo da carreira.
b) Que, finalmente e de facto, acabou a divisão da carreira em categorias: 2/3 dos professores terminavam a sua carreira a meio. Com este acordo chegam todos ao topo da carreira.
c) Que a nenhum professor que se encontra em exercício se aplica a prova de ingresso (incluindo os professores do ensino particular, IPSS's e do Ensino de Português no Estrangeiro).
d) Que os professores que se aposentem até 2015 serão reposicionados num novo índice salarial de topo (índice 370), mesmo que não se encontrem nesse índice no momento da aposentação.”
FENPROF on-line 08-Jan-2010
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